Preciso de uma casa para morar, com pé direito alto e um piano de cauda. Preciso de uma cadeira, pode ser de balanço, para eu me assentar no fim do dia, e tirar os sapatos, e acender um charuto e ler um livro. Preciso de uma cama boa e de uma boa luminária. Preciso de cão. De algumas plantas para eu regar todos os dias e de uma pequena horta. Preciso de um jardim na entrada da casa, com uma árvore alta para eu dependurar enfeites de Natal. Preciso de uma cozinha, com fogão à lenha, uma mesa grande bem velha e panelas bonitas. Preciso de um par de luvas para o frio. Preciso abrir a porta da cozinha e enxergar a Serra, enxergar um balanço de corda e o cão brincando com uma bola de meia.
Preciso sentir o vento frio, o gosto do café pela manhã e um beijo sabor creme dental logo cedo. Preciso de uma moto. Preciso de um teto de palha trançada e de formas de bolo redondas com um furo no meio. Mas o mais importante, mesmo, é uma casa, com pé direito alto e um piano de cauda. Porque cansei da opressão dos apartamentos. Por Marcelo Belico, às
3:17 AM.
sexta-feira, abril 22
96. outono de rã
O verão envelhece, mãe impiedosa. Os insetos vão escassos, esquálidos. Em nossos lares palustres nós apenas Coaxamos e definhamos.
As manhas se dissipam em sonolência. O sol brilha pachorrento Entre caniços ocos. As moscas não chegam a nós. O charco nos repugna.
A geada cobre até aranhas. Obviamente O deus da plenitude Está morando longe daqui. Nosso povo rareia Lamentavelmente.
(Poema de Sylvia Plath, tradução de Jorge Wanderley) Por Marcelo Belico, às
9:05 AM.
terça-feira, abril 19
95. partner
Não durmo mais sozinho. Desde ontem tenho a companhia de um belo par de meias brancas, novinhas, dadas pela mamãe. Servem para abrigar meus pés nesse princípio de dias e noites frias.
Mas, e principalmente, para me protegerem dos vorazes pernilongos. Por Marcelo Belico, às
9:08 PM.
sexta-feira, abril 15
94. trauma
Tenho sonhado pouco, a trama do tempo esgarçou-se de uma forma que não consegui escapar da constatação de que finalmente cresci. Acordei e plim estava um eu-adulto contabilizando cabelos brancos diante do espelho e sem disposição para muita coisa que não trabalho ou pensar em economizar tostões para o iminente enfarte de daqui mais alguns anos. Hoje mesmo senti um aperto no peito; sabe aqueles em que parece que tem uma laranja entre os pulmões? Esse. E ontem um artista plástico chegou para mim e disse que eu tinha cara jovem mas alma de velho. Espero que seja a mesma alma velha de minha bisavó que morreu aos cem e ainda era uma menina.
Aliás quero estar vivo para ver quando a senilidade será a minha desculpa para ser um velho safado e louco gritando que o mundo está acabando. Ou para descobrir em alguma louca aula de terapia transcendental que eu sou a descendente de algum rei medieval. Ou ainda para fazer aulas de bocha, usar chapéu sem parecer ter doze anos e calças marrom-xadrez. Até lá eu estou me preparando para um enfarte libertador; enquanto isso trabalho. Por Marcelo Belico, às
8:00 AM.
terça-feira, abril 12
93. citação
Sou eu que venho das tangentes, lá de onde as nuvens quase não passeiam pelo céu. E o ar que sopra de cima tem o ranço de um enorme caldeirão, azulando a linha do penhasco. [...] Bem distante, depois da fonte, lá na virada da serra, tem uma pequena estação rodeada de plataformas, todas abandonadas. E é daí que sai o carrossel da nossa imaginação, carregando cabeças, imagens e granizos que se acendem na velocidade de um raio e no meio do estalo clareiam em pilhas de outro recanto cheio de segredos, fíbulas e células. Quem sabe o nome desse lugar? É bom saber que sabemos, pois tornando claro o caminho do nosso sentimento chegaremos de dia nas terras do coração. E é aí que nasce o amor. [...]
Como é o amor? Ah, o amor. O amor deve ser que nem um passarinho, voando leve pra lá e pra cá, pra lá e pra cá. E quando é hora de repousar se assenta firme na cumeeira das rosas do vento, com esperança de pertencer a todos pra poder resistir às procelas da seca. E quando o inverno chegar será tão bonito, tão bonito que só vendo. As folhas verdes... É o velho campo de roupa nova! A semente madura nos dá a certeza de vida. Assim sendo podemos chegar sem receio no primeiro rancho e ali teremos moringa de água fresca para a nossa sede e rede cheirosa no avarandado. Com rendas, que é pra adornar o nosso sonho. (João Bá) Por Marcelo Belico, às
9:15 PM.
sexta-feira, abril 8
92. cinema mudo
Intolerância (1916). Filme de D. W. Griffith; enfoca a intolerância social e religiosa através dos séculos em quatro macro-histórias: um jovem sentenciado de morte por um crime que não cometeu, o massacre dos huguenotes na Noite de São Bartolomeu em 1572, a crucifixão de Cristo e a queda da cidade de Babilônia em 539 A.C.
2005. A intolerância continua, e é quase certo que dure o tempo exato até o fim da humanidade. Hoje me sinto vítima e agente da mesma. Sem saber como escapar. Admiro as pessoas corajosas, e definitivamente não sou uma delas.
Trilha sonora por Vital Farias: caso você case / não escreva a nota musical / não destrave a porta do hospital / não esteja morta / não estrague a horta. Por Marcelo Belico, às
12:50 PM.
terça-feira, abril 5
91. poça
Ouvindo a Maria Rita, lembrei de um verso na santa chuva: a chuva já passou por aqui / eu mesma quem cuidei de secar e lembrei de uma vez em que o apartamento, no quarto andar, alagou. Choveu tanto que a cozinha e a área de serviço pareciam uma piscina regan. Sequei tudo sozinho, no muque. Pensei em elaborar um guia.
No meu pequeno manual para se sobreviver a uma inundação o rodo, o pano de chão e a paciência fazem parte da lista de elementos indispensáveis. Rodo para se puxar a água, pano para secar o chão e paciência para se entender o refluxo, e compreender que demora um bom tempo para secar todos os cantos. Por Marcelo Belico, às
2:19 PM.
sexta-feira, abril 1
90. del
Tentei sete textos antes de escrever mais um sobre o mesmo tema. Porque não sei por onde começar, e tenho o meio pensado. O meio seria um e-mail que recebi, que transcrevo em parte: excluí e bloqueei você [do msn] por enquanto (...) decidi pensar mais em mim, eliminar da minha vida o que me faz mal. O princípio seria um contexto básico. Quem mandou esse texto foi um suposto amigo, junto de um pedido de desculpas. Aconteceu uma situação desagradável e esse rapaz acabou se ressentindo comigo. Eu entendo, e juro que qualquer um que ouvisse a história toda seria capaz de perceber que a minha parcela de responsabilidade não atinge um quarto do caso todo. Mas não quero discutir isso. E sim uma postura.
Assustou-me a facilidade com que foi resolvido um problema. Basta apertar o botão delete do teclado que tudo se transforma. Amigos vão e vem à medida das conveniências, e duram um tempo necessário para não causarem maiores contrariedades. Comodidade da vida digital à qual me acostumo com dificuldade. Fui fazer um levantamento das pessoas que considero amigas - poucas aliás - e vejo que temos uma história juntos. Que eu nunca teria coragem de apagar. Porque foram amigos conquistados devagar, sem urgências. E sei que essas pessoas não teriam nenhuma ressalva em se dizer contrariadas, de brigarem comigo até, como já foi o caso. Porque quem gosta cuida, quem gosta não atira pela janela uma amizade, quem gosta não aperta - em certos casos, como foi esse - um botão delete. Esse amigo, ou esse tipo de amigo, eu não quero mais. Por Marcelo Belico, às
12:58 PM.