Capa feita no corpo (274cm/108cm no comprimento)
1. cada pedaço de pano deve medir 3 yards no comprimento;
2. para fazer a capa o pano não pode ser cortado;
3. alfinetes-de-fralda devem ser usados na construção e depois o pano pode ser costurado para fazer a capa permanente;
4. a estrutura construída no corpo deve ser improvisada pelo próprio participante (se precisar da ajuda de outra pessoa, ok) e feita de forma que possa ser retirada sem cortar;
5. algumas pessoas podem participar juntas, mas uma só cor, i.e., um só pedaço de pano deve ser usado para cada capa.
(Hélio Oiticica) Por Marcelo Belico, às
10:05 AM.
terça-feira, novembro 23
59. trocado
Eu nasci foi para dormir na rede ouvindo a chuva, comendo macaxeira e sarapatel. Para virar gordo, preguiçoso e folgado: igual aquele cantor famoso, iam dizer. Para só ter tempo e vontade de namorar esparramado numa cama enorme. Para bolinar a menina no fogão de lenha. Fui parido para ser cria de casa de fazenda e patinar de cavalo. Para olhar mole-mole o lado e dizer que tudo está para depois de amanhã. Depois de amanhã começo, depois de amanhã eu lavo, depois de amanhã eu pego Mariazinha e levo para a missa e mando a costureira fazer uma roupa de chita nova, que hoje a menina anda é pelada mesmo qual o problema. Nasci para andar pelado e descalço. No sol com as coisas balangando como Deus mandou. Nasci quase que pra índio, como que se índio comesse sal. Nasci para me lavar na água salgada, cheirar a mato e curtir a pele até a cor do jambo. Nasci para ninguém me segurar onde eu não queira.
Aconteceu de quando eu nasci trocarem tudo. Fui mandado para um caixote pequeno amontoado no meio de outro tanto de caixotes e muita gente dentro igual pombal. Só me deram tempo e vontade de trabalhar para pagar conta. Não tem fogão de lenha em casa, não tem moça para bolinar. Não ando pelado, me enfiaram uma roupa cinza-vai-chover. Nem as coisas tenho direito para balangar, fica tudo apertado no pano. A cara nem posso pôr no sol que fica rosa-pimenta, o pé já não vê terra faz muito e eu cheiro a sabonete lux branco. Um dia troco tudo. Deixa só eu pagar minhas contas, são elas que me seguram. Por Marcelo Belico, às
1:06 PM.
sexta-feira, novembro 19
58. itinerário
Era manhã de um dia vinte e cinco qualquer quando ela resolveu sair de casa. Deixou um bilhete escrito 'amo vocês', jogou o sutiã vermelho na bolsa, calçou a sandália dourada e sumiu no mundo. Queria ser madrinha de bateria da Mangueira. Meteu-se no primeiro ônibus para o Rio de Janeiro, chegou lá em dois dias com seu sonho e mais nada. Desceu na rodoviária e pegou condução até a Central do Brasil. Foi depois que descobriu que a Mangueira não era ali. Entrou no metrô, parou enganada em Del Castilho, cortaram a sua bolsa com navalha, deixaram o sutiã e três reais.
Tinha fome. Resolveu usar o dinheiro para conhecer Copacabana. Sacolejou em um lotação debaixo do sol das duas da tarde. Desceu na praia, tirou a roupa, pôs o sutiã e foi molhar os pés. Roubaram-lhe a bolsa cortada com a sandália dourada. Só sobrou ela de calcinha e sutiã vermelho na praia de Copacabana. Caía a noite e ela caminhava no calçadão. Parou um carro, um homem a chamou para entrar.
Cinco dias depois encontraram um corpo de mulher boiando no mar em Niterói. Usava só um sutiã vermelho; pouco se reconhecia, tinha partes comidas pelos peixes. Havia sinais de estupro, marcas de espancamento e traços de esperma em sua vagina. O cabelo estava raspado, os olhos e os rins arrancados. Foi denominada vítima de um traficante de órgãos tarado e enterrada como indigente.
Dizem que todo ano seu fantasma passeia na Sapucaí nos desfiles de carnaval. Várias pessoas juraram que a viram na televisão, sambando em frente a bateria da Mangueira. Mas é tudo bobagem, idéia dessa gente que bebe demais. Por Marcelo Belico, às
1:49 PM.
terça-feira, novembro 16
57. da natureza dos metais
Palavra é prata, silêncio é ouro. "Dias de ouro" até passar um rio. Dias de ouro porque choro: inexplicavelmente alegre e triste ao mesmo tempo. Estou feliz. Estou muito triste. E esses dois sentimentos coabitam meu coração e seguem paralelos. Agradeço os abraços e o colo que ganhei, vão ajudar muito nos meus dias de ouro.
Aguardo pacientemente no alto de uma montanha a pedra filosofal. E que o ouro vire prata logo. Porque, como escreveu o Drummond, eu preparo uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças. Por Marcelo Belico, às
10:22 AM.
sexta-feira, novembro 12
56.
, alucinado:
duas ruas luas
e um torto; estranho em mim Por Marcelo Belico, às
1:30 PM.
terça-feira, novembro 9
55. lenda da iamuricumã Contador: Fadjuvi Kalapalo
Um rapaz filho de chefe, furou a orelha de muitos meninos da aldeia. Depois seu pai o prendeu e o deixou sem comer peixe por dois meses, como os outros meninos que furaram as orelhas.
Depois de dois meses o chefe chamou os homens para pescar e dar peixe para os filhos. Disseram às suas mulheres que voltariam em cinco dias. Passaram-se dez dias e eles não voltavam. As mulheres já estavam bravas.
O filho preso foi procurá-los e levou uma flauta. Chegou e viu os homens comendo fruta e virando bicho. Os peixes que eles haviam pego estavam estragando porque eles não comiam. Ele encheu a flauta de peixe para levar para a aldeia. Chegando lá contou para sua mãe. Ela ficou muito brava com os homens.
Cozinhou o peixe e chamou as mulheres para contar a estória. Como tinham medo de virar bicho também, resolveram cantar Iamuricumã. De longe os maridos as ouviam. Contavam que os homens as haviam abandonado e também aos filhos. Agora estavam usando o cocar, o urucum deles e sua pintura.
Iquequé, enecupé-uca-é. Estou usando seu cocar com a pena do Rei Congo.
Foram atrás de seus maridos. Eles ficaram curiosos para saber o que elas faziam. Elas passaram perto deles, eles ofereceram peixe, mas elas não aceitaram. Continuaram a cantar até que uma delas abriu um buraco e pescou um peixe.
Disse para o marido que não precisava do peixe, tinha o dela. Encheram a barriga e continuaram. Saíram cantando. Elas voltaram para a aldeia, os maridos atrás insistiam para elas levarem os peixes. Ficaram dois dias na aldeia e depois decidiram sair sem direção, sempre cantando e dançando.
Chegando no mato fizeram uma cesta grande para abrir um buraco para elas. Entraram debaixo e ficaram cantando. Saíram e encontraram um rio. Para atravessar tiveram que jogar as crianças n’água e elas viraram peixes.
Logo construíram uma aldeia. Os maridos ainda estavam atrás delas. Fizeram uma lagoa bem grande e ficaram lá, sempre cantando Iamuricumã. Ficaram lá um ano e a Anta foi na aldeia delas. Os filhos pequenos das mulheres lutaram com a Anta, ele estava com sede e entrou nas casas procurando água. Não tinha nas casas, ali ele foi até a lagoa e bebeu toda a água, até secá-la.
As mulheres tiveram que ir embora para a Amazônia. Entraram debaixo da terra, o tatu abriu um buraco na terra para elas.
Elas ficaram morando perto de Cuiabá. Por Marcelo Belico, às
2:01 PM.
sexta-feira, novembro 5
54. o pássaro azul
Há muito tempo na sessão da tarde passava um filme chamado O pássaro azul (1940), com a Shirley Temple. Trata-se de uma fábula: duas crianças, a garota Mytyl e seu irmão Tytyl, após a convocação de seu pai para combater Napoleão, ficam sozinhas em casa. Mytyl recebe uma noite a visita da fada Berylune que os manda, juntamente com o seu gato e cachorro transformados em humanos, em busca do pássaro azul da felicidade através do passado, do presente e do futuro. Depois de uma longa aventura, voltando para casa, Mytyl descobre que o pássaro azul da felicidade era aquele em sua gaiola, que ela havia capturado no começo da história. O grupo procurou por algo que o tempo todo estava dentro de sua própria casa. É uma jornada de amadurecimento; a expedição dá voltas, passa por terras encantadas, a equipe tem dificuldades, mas os meninos chegam em casa capazes de compreender melhor o que já existia. E entender que muito do que se deseja está presente, esperando apenas ser notado.
A fábula mostra que tantas vezes procuramos lá fora aquilo que está dentro de nós mesmos. Talvez seja assim com as crianças crescidas que somos. Uma vontade de mudar, o desejo do novo, a urgência de se ser feliz acaba por nos enviar por caminhos que, nunca inúteis, nos trarão de volta a uma realidade tão simples e sincera quanto a do início; porém transformada aos nossos olhos em novidade acolhedora e aconchegante. O antigo metamorfoseado em condição plausível. Quão surpreendente não deve ser, um dia, voltando a um ponto de partida, perceber que tudo o que foi desejado estava sempre ali. Mais espantoso ainda é descobrir que talvez justo o ansiado possa estar no começo de tudo. Ou que de uma realidade aparente estéril possa brotar uma linda árvore de maçãs. Com um pássaro azul cantando nela. Por Marcelo Belico, às
9:31 AM.
terça-feira, novembro 2
53. finados
Em minha cidade, Ponte Nova, normalmente chove nos dias de finados. Quase sempre uma garoa fina, das que acompanham manhãs cinzas e frias. Saio cedo e subo a pé para o cemitério, no alto de um morro. Eu pensava que chovia para ajudar no caminho e a gente não ficar com o sol na cabeça, ou então para uma ou outra senhora escorregar e cair nas pedras pé-de-moleque que até hoje calçam as ruas. O cemitério da cidade parece com qualquer cemitério tradicional com túmulos enfileirados. Clássico, sem essas novidades de cemitério-parque.
Faço um roteiro tradicional e curto. Visito minha avó e minha bisavó maternas que estão no mesmo lugar. Arrumo as flores de plástico e o vaso que caiu (ele sempre cai). Penso que devo avisar minha mãe para trocar as flores e pagar alguém para capinar o mato que está alto demais. Depois vou visitar minha bisavó Arlinda (uma de minhas madrinhas de batismo - tenho duas), falo uma ou duas coisas para ela, conto as novidades. Quando minha bisavó morreu minha mãe pintou na lápide: Arlinda Baião, 10.06.1899 - 25.11.1999. E embaixo assinou: Ione. Penso que devo mais uma vez brigar com a minha mãe porque ela ainda não apagou aquela assinatura horrosa.
Depois procuro o túmulo de minha outra bisavó (também minha madrinha) e não acho. Eu estou procurando esse túmulo tem anos. Só que como sempre vou sozinho não tem ninguém para me contar onde está. As pessoas de minha casa são bem relapsas nos cuidados com os mortos, então pode ser que minha bisavó esteja em qualquer lugar, e eu só vou descobrir quando morrer mais um lá de casa. Aí esqueço todas as coisas que tenho para dizer a minha mãe, lavo as mãos e volto para casa.
A última vez que fui visitar meus parentes mortos não era dia de finados. A minha avó disse que era um absurdo eu não visitar meu bisavô, porque ele gostava muito de mim. Que eu tinha de procurar por ele lá também. Não achei. Na verdade eu tenho um senso de orientação péssimo naquele cemitério. Nunca encontro nada. Perguntei minha avó como é que era o túmulo do meu bisavô e ela: 'aquele que tem a assinatura dele ué'. Era um túmulo que eu já tinha passado muitas vezes. Só que o Sr. Cunha tinha uma letra tão feia que eu não entendia o que estava escrito. Ainda não voltei lá para cumprimentá-lo, deve ficar para o Natal. Por Marcelo Belico, às
11:26 AM.