terça-feira, junho 29

17. farmacopéia

Mulheres tarja-preta, contra-indicadas, que causam dependência física e psíquica. Com elas, não há de vez em quando; toma-se uma dose já se desejando outra. - Fernanda Young, Aritmética.

Saltei na rodoviária pensando se realmente tinha tomado a decisão correta ou se estava guiado por algum impulso mais exagerado. Eu, lugar desconhecido, atrasado, mais de meio dia dentro de um ônibus para me encontrar com alguém. Uma e meia de manhã chego ao hotel e sou encaminhado a um quarto vazio. Confusão de recepcionistas, ele esperava alguns andares acima, foi atrás de mim na portaria, chamou aquele quarto e me pegou no elevador. Subimos, sanduíche pronto há horas esfriando, tempo de um beijo para matar a saudade de meses. Reencontro que pareceu amor, troca de olhares e secreções. Nunca a minha pele tinha recebido tão bem o contato de outra. Nunca a minha presença havia sido tão bem aceita. Eu amava. E enganei-me pensando estar sendo amado. Tempo.

Quase um ano depois encontro a definição para quem passou: pessoa tarja-preta. Deveria vir com bula e receita azul, acesso restrito e controlado pelo governo. Vicia. Cria a ilusão de amor, adoça a vida e, quando suspenso repentinamente, faz todo o seu chão ruir, causa apatia, amaldiçoa os dias e amarga as lembranças. Pessoas tarja-preta, mais perigosas que qualquer droga lícita ou não. Facilmente encontráveis nas melhores casas do ramo.

Por Marcelo Belico, às 1:00 AM.




sexta-feira, junho 25

16. snow

... morreu, de fato, de uma dose letal de Cinzano e cocaína. Um erro de dosagem. Um acidente. Trecho de Furacão Elis que sempre leio quando tenho o livro nas mãos. Elis Regina foi embora em janeiro de 82 e eu contava quatro anos e meio. Com certeza novo demais para tudo, mas a memória insiste em não esquecer. Muito porque foi a primeira grande comoção nacional que presenciei tendo um mínimo de consciência. Lembro até hoje da cobertura do funeral no teatro, das emissoras mostrando trechos de entrevistas, imagens da Elis cantando, enfim, coisas que se fazem quando morre alguém importante. O que eu não entendia era porque aquela mulher tinha morrido, estava no caixão, e ao mesmo tempo saía para cantar, trocava de corte de cabelo e por que o povo todo chorava se ela para mim estava ali viva e funcionando. Mas mãe, se ela morreu, não era para ela parar? Fui respondido com um é 'videoteipe'. Anos depois descobri uma coleção de LPs da cantora. Passei parte de minha infância com Elis mais um livro de capa verde, poesia completa de Carlos Drummond de Andrade. Ouvindo arrastão e lendo e agora, José? Sem entender muito, apenas acontecendo.

A morte da Elis fez-me saber que existia a cocaína. Quem sabe tenha até me dado medo e desejo em medidas semelhantes para experimentá-la. A cocaína fez-me ter medo e desejo suficientes para entender que coisas nocivas podem parecer boas. Tendo medo e desejo percebi a não-necessidade de muitas delas. Da própria cocaína, que larguei faz tempo. Tive até uma recaída recente que serviu para dizer que não vale mesmo a pena. A morte da Elis fez-me saber também que existe o Cinzano. Esse eu nunca nem provei.

Por Marcelo Belico, às 12:32 PM.




terça-feira, junho 22

15. os guardados em casa de meu pai

A família tem Arlinda, Joaquina e várias Marias. Cada uma em seu tempo ensina algo. Arlinda cria a devoção por velas bentas que só podem ser acesas em dias de temporal e duram mais anos do que eu mesmo recordo. Arlinda guarda imagens de santos em seu armário e dinheiro dentro de uma caixa de sabonetes Maja. Joaquina é filha de Arlinda, assim como Maria da Conceição, e desde criança foi criada no hotel da mãe. Casou sem saber passar um café, aprendeu com o marido. Teve cinco filhos e o tempo todo para descobrir como fazer as melhores empadas de queijo, a melhor goiabada cascão e o melhor pavê de biscoitos champagne. Joaquina não gosta do nome, prefere o apelido Quilita que lhe deram na infância. Foi e é hoje aos setenta e oito anos uma mulher bonita, guarda os mistérios do terço dentro de um álbum de fotografias Kodak. Maria da Conceição não se casou, viveu para cuidar da mãe, que morreu aos cem, do irmão e do sobrinho-neto. Não se tem notícia de algum namorado em sua vida, exceção a um senhor viúvo que visita sempre que vem à capital. Maria da Conceição guarda sua coleção de bijouterias em uma caixa de biscoitos importados.

Maria de Lourdes e Arlinda eram concorrentes - as duas donas de hotéis - mas casaram os filhos. Não se suportaram em vida e agora mortas foram providencialmente colocadas a cinco túmulos de distância. Maria de Lourdes guardava sete gatos em seu hotel. Maria de Lourdes é mãe de outra Maria, também de Lourdes, mas conhecida por Lourdinha. Lourdinha deu pra uma tia-avó meio louca, ensinando a jogar buraco, a comer pão com Toddy, a brincar no chuveiro de areia nas férias de verão em Guarapari. Lourdinha guarda panos de prato bordados. Joaquina, filha de Arlinda e nora de Maria de Lourdes, é mãe de Maria Auxiliadora. Essa guarda dinheiro no banco e a saudade do marido que morreu novo demais.

Por Marcelo Belico, às 7:23 AM.




sexta-feira, junho 18

14. quiromancia

Tudo o que você quer está em suas mãos. Cabe a você plantar, regar, colher. Apagar o que se não mais deseja. Todo o seu direito a felicidade está às mãos. Não entregue, não ceda, não passe adiante; é seu para o que quiser, como quiser, até para ser feliz junto. Esqueça o passado, aponte as suas mãos para a frente e veja nelas as marcas do tempo, ali indeléveis.

Aproveite as mãos para os afagos de amigos, amores ou não-conhecências. Use-as para o bem e o bem-querer. Mas lembre-se sempre que mãos também enxugam lágrimas.

Por Marcelo Belico, às 9:02 AM.




terça-feira, junho 15

13. interrogação e pontos

... ninguém mais coça bicho de pé. E o que mais não se é feito? O que não mais se é sonhado, o quê foi jogado para o depois, guardado no baú das teias de aranhas, à espera de o mofo tornar em verdes os pensamentos um dia vermelho-vivos? Qual o desejo secreto e inconfessável? O que não pode ser contado? Nem ao melhor amigo? Nem à melhor amiga? Nem ao irmão, nem à mãe? Nem ao padre?

Também tenho meus segredos, silenzio, no hay banda. Assim como todos guardo um baú de recuerdos e uma caixinha de perversidades. Não sou, nunca fui, tampouco serei boa pessoa. Isso não deve ser-me pedido, não consigo atender. Peçam-me um sorriso largo e constante, peçam-me um prato de comida. Jamais para ser bom.

Por Marcelo Belico, às 6:25 AM.




sexta-feira, junho 11

12. gesso e tinta

Lugar que já passei muito medo foi a sala de santos da igreja de Ponte Nova. Corredor estreito, cheio de prateleiras, um depósito das imagens que não estão à mostra. Todos os santos parados, cobertos por plásticos, esperando o dia de desfilar em andor, ocupar lugar no altar, acompanhar missa. Mas tinha santo lá que eu, antigo coroinha, nunca vi sair. Inclusive durante muito tempo eu nem sabia desse lugar.

A primeira vez que entrei na sala foi acidente, corria pela sacristia para buscar um sei-lá-quê. Chamei a Celinha, uma senhora que tomava conta da igreja, sua voz no fundo respondeu. Vi uma porta aberta e entrei. Celinha lá dentro, pano na mão, e aquele tanto de imagem coberta de plástico me encarando. O susto foi tão grande que, não sei em que ordem, fiquei parado, não conseguia abrir a boca e só lembro de ter dado fé de novo das coisas assentado na cadeira do padre e perguntando que é que era aquilo. Dizem que a sala fechou com a reforma da igreja, virou banheiro. Não sei para onde os santos se mudaram.

Por Marcelo Belico, às 11:49 AM.




terça-feira, junho 8

11. laranja

Minha infância já chega cor de laranja, ferrugem, foto velha. Lembranças de um tempo que ainda não sei se de todo bom, ou de todo ruim. Conservo algumas memórias, a bolada na cara no treino do futebol, os infinitos pé de jaboticaba enfileirados na fazenda em Oratórios, o passeio a cavalo na areia em Cabo Frio, brincadeiras de pega depois da aula na frente da prefeitura, gangorra de árvore com a minha prima Juliana.

Certa vez estava em um sítio de primos que tinha cuscuzeira, água de bica e cachorro dos que a gente puxa o rabo e ele gira. E um pátio enorme livre para correr e brincar. A prima, mais velha, dizia que a água ali era mais limpa, e que a gente ficava mais branco quando tomava banho por lá. Mas eu só queria saber de brincar no pátio gigante até ficar escuro. Laranja escuro. Da casa ainda guardo a memória de ser lugar grande. Já vão mais de treze anos que não passo por lá.

Por Marcelo Belico, às 1:07 AM.




sexta-feira, junho 4

10. cotidiano

Exercício difícil de se treinar é a espera. O esperar aflige tanto ou mais que decisões pesadas. Espera-se. Um trem, o final do mês, uma festa. Que chegam em forma distinta, única, personalizada. Vêm em muitos casos trazendo uma decepção, já que tantas vezes o esperado acontece de jeito imprevisto.

Porém quem não espera? E quem na espera não vislumbra, imagina, delineia o desejo? Nascemos todos talhados para a nobre arte do esperar, nem que seja pela saída de um bolo do forno. Assim contamos os dias a esperar. Do nascer dos dentes ao último sopro.

Por Marcelo Belico, às 12:10 AM.




terça-feira, junho 1

9. vegetal

A rua do lado toda quarta-feira recebe uma feira livre. Com tomates, cenouras e folhas verdes. Encanta-me o amarelo das bananas, todas empilhadinhas e recém-colhidas do Ceasa, exibidas. A cidade grande proporciona breves momentos de resgate do natural, mesmo sendo raras as hortas belorizontinas. Posso ver senhoras com seus carrinhos e sacolas perguntando o quanto custa ao verdureiro; os maridos e crianças impacientes pelo tempo que não passa, cada vez mais atolados pelos sacos de compras. Um conjunto belo. Tão belo que tenho pena em desfazer, em quebrar sua harmonia. Sinto que talvez eu ofendesse aquela couve, retirando-a da integração forçada com suas semelhantes e condenando-a a um plástico transparente e a uma gaveta de geladeira. Como se ela, ou algum outro vegetal ali, fosse me olhar indignada por tê-la privado das últimas fofocas da terra. Penso que até mesmo as verduras gostam de companhia e prefiro deixá-las lá, participando da beleza das feiras de quarta. Nelas o que me cabe são os ovos, um real e cinqüenta a dúzia. Comprar ovos semana sim semana não é o máximo que me permito naquela hora. As verduras deixo para comprar no supermercado, lugar mais condizente com o urbano em que vivo.

Por Marcelo Belico, às 7:25 AM.





Marcelo Belico
mercado de pulgas

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